quarta-feira, 13 de maio de 2020

(Des) nascer


(Des)nascer

ato ou efeito de deixar de nascer
o contrário de nascer
início do processo de (des)viver

Há vinte anos mudei-me pra essa casinha que hoje vivo. Eu não estava querendo mudar, mas, na época, eu tomei umas atitudes inconsequentes e meu pai achou por bem, que eu me afastasse, pois assim evitaria grandes e maiores problemas pra todo mundo. O engraçado é que eu me sentia na minha melhor fase. Tinha acabado de conseguir propostas incríveis de trabalho, tinha superado meu divórcio e até começado a namorar uma pessoa incrível. A minha relação com você, meu filho estava ótima e eu finalmente tinha conseguido uma casa confortável pra nós dois.
Eu não posso reclamar daqui. Fiz muitas amizades, todos são muito amistosos e meu pai continua vindo copiosamente conversar comigo todas as manhãs durante o café. A vida aqui é fácil, leve, triste, feliz ou enfadonha, conforme a nossa própria vontade. Se estamos dispostos, jogamos, brincamos, damos até festa. Mas se não quisermos, nada é obrigatório. Podemos ficar dias dentro de casa que ninguém nos cobra nada. Não aparece uma única alma na sua porta pra perguntar como você está. E isso às vezes me chateia. Mas aqui respeitamos o outro desse jeito.
Eu não reclamo de nada. No começo, sim. Sentia tanta culpa, tanta mágoa, tanto arrependimento. Tanta coisa que a gente tinha pra viver juntos. Olha, eu queria sair daqui e voltar correndo pro seu abraço, meu filho, pro colinho da sua avó também, pra nossas noites regadas a desenho e pipoca. Mas eu não podia voltar. Ainda não posso. No fim das contas, acho que meu pai estava coberto de razão ao me trazer pra cá. Aqui eu não machuco ninguém, nem a minha mesma. E o principal, eu não machuco você filho. Como se fosse possível me machucar mais do que eu já me machuquei e te machuquei durante toda a vida.
No começo eu até procurei saber o que acontecia contigo, queria saber também como estavam as pessoas, como é que elas foram se transformando, o que faziam. Típico de quem chega aqui com muitas lembranças. E eu só pensava em você. Mas depois parei. Eu não vi você aprender a ler, não vi quando caiu seu primeiro dente, nem quando você se apaixonou a primeira vez. Mas eu não deixei de te amar um só segundo.
Todos aqui falam de seus filhos, de seus amigos, seus cônjuges e familiares que deixaram pra trás. Mas o processo de esquecer, lidar, amadurecer e renascer é diferente pra cada um. Aqueles que chegaram a menos tempo, são silenciosos. Costumamos espiar pela janela e ver as luzes de suas casas acesas até bem tarde. Mas sabe, hoje entendo que não importa muito porque estamos aqui. Como viemos ou o que aprontamos. Aqui não há julgamento. Somente aquele que você faz consigo mesmo.
Hoje observei o sol. Era fim de tarde e aqui conseguimos escolher qual a melhor posição para admirá-lo. Observar o sol daqui é sempre mais bonito. Um dia ainda vamos observar juntos. E essa é a certeza mais bonita que consigo cultivar dentro de mim. Nosso reencontro. O sol aqui do céu é mais intenso. Não sua quentura, mas sim sua cor, ele é colorido e seus raios tocam o chão da terra. E o melhor, tocam também o céu. Talvez por isso eu goste tanto do sol. Porque é o jeito mais bonito de ligar a minha casinha daqui, com a sua casinha aí na terra.
Eu observei o sol e lembrei de uma de suas gracinhas. Eu costumava postar frases e fotos num aplicativo chamado Instagram. (Eu espero sinceramente que seu pai tenha te mostrado todas as anotações e fotos que eu costumava fazer de você). Era um projeto lindo que fizemos. E eu sei que Instagram não existe mais, porque todos por aqui comentam que agora os aplicativos todos se uniram num só e você não precisa mais entrar em vários pra fazer praticamente a mesma coisa em cada um deles. Expor sua vida. Enfim, um aplicativo só deve ser interessante. Mas não consigo me acostumar com a ideia de que as pessoas possam agora editar sua própria vida. E não estou falando em edição de imagem ou vídeo não, estou falando de editar o presente e o passado, nesse banco de dados enorme que o Google criou. Não sei como não vira uma bagunça. Mas eu nunca vou saber mesmo. Estou velha pra essas coisas.
Enfim, a palavra desnascer e sol mexeram demais comigo hoje. E me arrisquei a espiar a sua vida. Eu juro que nunca desci, nunca puxei seu pé ou fiquei de vulto na casa do seu pai aí. Eu não fiz essas coisas, se alguém cogitou que eu apareci na terra nesses vinte anos, é mentira. Eu fiquei aqui, trancada no céu.
Sabe de uma coisa? Eu até acho que a quarentena de dois mil e vinte me ajudou a não enlouquecer por aqui. Acho que já estava tão habituada a ficar em casa e não ver os amigos, que quando meu pai me colocou aqui, eu fui direto cuidar das hortas e me entreter com as lidas da casa. O que não significa que não tenha sentido sua falta. Eu senti, todos os dias. Todos os dias durante esses vinte anos.
A terra está diferente agora. E não é só o Instagram não. Fico aqui pensando que você deve me achar uma velha coroca só por falar essa palavra, não é não? Perdão, mas é que eu ainda não me acostumei a falar esses nomes esquisitos que vocês dão pras coisas ai na terra hoje em dia. Tem tanta coisa diferente por ai meu filho, tanta mesmo. A internet é que conduz a vida de todos vocês. E isso pode até parecer ruim, mas não é, necessariamente. Tudo tem o lado bom e o lado ruim. Assim é a vida, e a morte.
Por fim, meu filho, queria te relatar algumas coisas que não pude na época que tive de partir. Primeiro, que eu tentei ao máximo cuidar pra que você não se contaminasse como eu me contaminei com o vírus. E que bom que você foi assintomático. E que meu pai me levou antes que eu pudesse contaminar outras pessoas. Aquela parada respiratória, foi de parar tudo mesmo. Foram dias difíceis na UTI, e eu chegava a sonhar com o seu beijo e com o seu abraço. Mas todos que cuidaram de você acabaram ficando bem. E essa foi a primeira notícia que recebi quando cheguei no céu.
Eu vejo aqui da minha janelinha que você está namorando. E eu fico tão feliz. Imagino que foi difícil pra você se relacionar. Porque aqui todos comentam que a humanidade (viva) passou a ter receios de toque, abraço e beijo. Mas você está conseguindo amar e ser amado. Não deixe que o medo te inunde. Seja capaz de sair das profundezas. Você costumava encarar seu medo de escuro e de fantasma.
Outra coisa que a humanidade (morta) comenta aqui, é que as pessoas agora se alimentam melhor. Não comem qualquer coisa, uma boa parte da população virou vegana e a outra está pelo menos pensando em se tornar. Que bom que nós dois já tínhamos iniciado esse processo quando você era pequeno, não é? Mas sabe, o que mais me causa estranhamento é sobre a relação de vocês com o tempo. Só pra você saber, eu cheguei aqui hoje, ou ontem, ou semana passada ou até no ano que vem. Não temos tempo. Aqui temos presença. Mas eu não deixei de contar os números na terra. E eu sei que você já tem vinte e cinco anos. Quando morri por Covid-19 você tinha só cinco. Que saudade daquele tempo. Enfim, o tempo mudou as coisas.
O tempo mudou pra mim aqui, mas mudou pra todos vocês aí também. Vejo que não há mais tanta pressa, não há correria como antes e você não conta mais o tempo em horas. Vocês contam o tempo em momentos. Uma reunião não tem mais uma hora pra acontecer. Tem um momento. Você não precisa mais correr contra o tempo pra chegar às oito. Você só precisa chegar. E eu fico feliz, que mesmo com tudo o que aconteceu na sua vida, você tenha crescido esse homem tão íntegro, nessa sociedade que amadureceu seu tempo. Tenho orgulho de você. Vocês têm começado a entender o desnascer e isso é bonito.
Eu queria te dizer por fim, que eu te peço perdão. Perdão por todas as noites que não pudemos dormir juntos, por todas as brincadeiras que não brincamos, por todas as letras que não lemos juntos. Por não estar presente na sua vida quando conseguiu o seu primeiro emprego, sua primeira transa ou quando seu pai faleceu.
Se você quiser saber se ele mora por aqui também, sim, ele mora. Mas ainda não tivemos oportunidade de nos encontrarmos. Ele está num processo muito recluso ainda. Dizem que ele está bem. E eu prometo que vou visitá-lo em breve.
Meu filho, não sei como te entregar essa carta ainda. Acho que vou colocar num envelope e esperar que algum passarinho forte e corajoso venha até aqui e leve pra você.
Eu te amo, filho. Prometo que vou passar continuar a observar o sol desnascendo.
Com amor,
Sua mãe.

terça-feira, 12 de maio de 2020

O ano em que a morte não saiu de férias



Ouvi dizer que quando a morte se aproxima, quando toca-lhe o cenho e se despede logo mais, como que dizendo que voltará depois pra te reencontrar, você ganha uma oportunidade única de recomeçar. Dizem que se nasce de novo. Mas olha a morte nunca chegou perto de mim. Nunca senti seu hálito, cheiro ou vi sua sombra entre as frestas da janela. Ela me achava boba, de sabor ruim. Ela e o tempo fizeram um pacto de me levar velhinha. Porque eu precisava deixar minha carne mais saborosa, meus órgãos putrefatos e minha mente mais sagaz. Eu sabia que um dia iria encontrá-la, que íamos nos cumprimentar, olhar de canto de olho. Fazer um aceno rápido e dizer até a próxima. Acontece que ela e o tempo mudaram de ideia. Completei 35 e ela chegou. Não deu tempo de fazer as malas, ficar sagaz ou apodrecer. Partimos. Eu e ela. O tempo ficou consolando os demais.