(Des)nascer
ato ou efeito de deixar de nascer
o contrário de nascer
início do processo de (des)viver
Há vinte anos mudei-me pra essa
casinha que hoje vivo. Eu não estava querendo mudar, mas, na época, eu tomei
umas atitudes inconsequentes e meu pai achou por bem, que eu me afastasse, pois
assim evitaria grandes e maiores problemas pra todo mundo. O engraçado é que eu
me sentia na minha melhor fase. Tinha acabado de conseguir propostas incríveis
de trabalho, tinha superado meu divórcio e até começado a namorar uma pessoa incrível.
A minha relação com você, meu filho estava ótima e eu finalmente tinha conseguido
uma casa confortável pra nós dois.
Eu não posso reclamar daqui. Fiz muitas
amizades, todos são muito amistosos e meu pai continua vindo copiosamente conversar
comigo todas as manhãs durante o café. A vida aqui é fácil, leve, triste, feliz
ou enfadonha, conforme a nossa própria vontade. Se estamos dispostos, jogamos,
brincamos, damos até festa. Mas se não quisermos, nada é obrigatório. Podemos
ficar dias dentro de casa que ninguém nos cobra nada. Não aparece uma única alma
na sua porta pra perguntar como você está. E isso às vezes me chateia. Mas aqui
respeitamos o outro desse jeito.
Eu não reclamo de nada. No
começo, sim. Sentia tanta culpa, tanta mágoa, tanto arrependimento. Tanta coisa
que a gente tinha pra viver juntos. Olha, eu queria sair daqui e voltar
correndo pro seu abraço, meu filho, pro colinho da sua avó também, pra nossas
noites regadas a desenho e pipoca. Mas eu não podia voltar. Ainda não posso. No
fim das contas, acho que meu pai estava coberto de razão ao me trazer pra cá.
Aqui eu não machuco ninguém, nem a minha mesma. E o principal, eu não machuco
você filho. Como se fosse possível me machucar mais do que eu já me machuquei e
te machuquei durante toda a vida.
No começo eu até procurei saber o
que acontecia contigo, queria saber também como estavam as pessoas, como é que
elas foram se transformando, o que faziam. Típico de quem chega aqui com muitas
lembranças. E eu só pensava em você. Mas depois parei. Eu não vi você aprender
a ler, não vi quando caiu seu primeiro dente, nem quando você se apaixonou a
primeira vez. Mas eu não deixei de te amar um só segundo.
Todos aqui falam de seus filhos, de
seus amigos, seus cônjuges e familiares que deixaram pra trás. Mas o processo de
esquecer, lidar, amadurecer e renascer é diferente pra cada um. Aqueles que
chegaram a menos tempo, são silenciosos. Costumamos espiar pela janela e ver as
luzes de suas casas acesas até bem tarde. Mas sabe, hoje entendo que não
importa muito porque estamos aqui. Como viemos ou o que aprontamos. Aqui não há
julgamento. Somente aquele que você faz consigo mesmo.
Hoje observei o sol. Era fim de
tarde e aqui conseguimos escolher qual a melhor posição para admirá-lo. Observar
o sol daqui é sempre mais bonito. Um dia ainda vamos observar juntos. E essa é
a certeza mais bonita que consigo cultivar dentro de mim. Nosso reencontro. O
sol aqui do céu é mais intenso. Não sua quentura, mas sim sua cor, ele é
colorido e seus raios tocam o chão da terra. E o melhor, tocam também o céu.
Talvez por isso eu goste tanto do sol. Porque é o jeito mais bonito de ligar a
minha casinha daqui, com a sua casinha aí na terra.
Eu observei o sol e lembrei de
uma de suas gracinhas. Eu costumava postar frases e fotos num aplicativo
chamado Instagram. (Eu espero sinceramente que seu pai tenha te mostrado todas
as anotações e fotos que eu costumava fazer de você). Era um projeto lindo que fizemos.
E eu sei que Instagram não existe mais, porque todos por aqui comentam que
agora os aplicativos todos se uniram num só e você não precisa mais entrar em
vários pra fazer praticamente a mesma coisa em cada um deles. Expor sua vida.
Enfim, um aplicativo só deve ser interessante. Mas não consigo me acostumar com
a ideia de que as pessoas possam agora editar sua própria vida. E não estou falando
em edição de imagem ou vídeo não, estou falando de editar o presente e o
passado, nesse banco de dados enorme que o Google criou. Não sei como não vira uma
bagunça. Mas eu nunca vou saber mesmo. Estou velha pra essas coisas.
Enfim, a palavra desnascer e sol
mexeram demais comigo hoje. E me arrisquei a espiar a sua vida. Eu juro que
nunca desci, nunca puxei seu pé ou fiquei de vulto na casa do seu pai aí. Eu não
fiz essas coisas, se alguém cogitou que eu apareci na terra nesses vinte anos,
é mentira. Eu fiquei aqui, trancada no céu.
Sabe de uma coisa? Eu até acho
que a quarentena de dois mil e vinte me ajudou a não enlouquecer por aqui. Acho
que já estava tão habituada a ficar em casa e não ver os amigos, que quando meu
pai me colocou aqui, eu fui direto cuidar das hortas e me entreter com as lidas
da casa. O que não significa que não tenha sentido sua falta. Eu senti, todos
os dias. Todos os dias durante esses vinte anos.
A terra está diferente agora. E
não é só o Instagram não. Fico aqui pensando que você deve me achar uma velha
coroca só por falar essa palavra, não é não? Perdão, mas é que eu ainda não me
acostumei a falar esses nomes esquisitos que vocês dão pras coisas ai na terra
hoje em dia. Tem tanta coisa diferente por ai meu filho, tanta mesmo. A internet
é que conduz a vida de todos vocês. E isso pode até parecer ruim, mas não é,
necessariamente. Tudo tem o lado bom e o lado ruim. Assim é a vida, e a morte.
Por fim, meu filho, queria te
relatar algumas coisas que não pude na época que tive de partir. Primeiro, que
eu tentei ao máximo cuidar pra que você não se contaminasse como eu me
contaminei com o vírus. E que bom que você foi assintomático. E que meu pai me
levou antes que eu pudesse contaminar outras pessoas. Aquela parada
respiratória, foi de parar tudo mesmo. Foram dias difíceis na UTI, e eu chegava
a sonhar com o seu beijo e com o seu abraço. Mas todos que cuidaram de você
acabaram ficando bem. E essa foi a primeira notícia que recebi quando cheguei
no céu.
Eu vejo aqui da minha janelinha que
você está namorando. E eu fico tão feliz. Imagino que foi difícil pra você se
relacionar. Porque aqui todos comentam que a humanidade (viva) passou a ter
receios de toque, abraço e beijo. Mas você está conseguindo amar e ser amado. Não
deixe que o medo te inunde. Seja capaz de sair das profundezas. Você costumava encarar
seu medo de escuro e de fantasma.
Outra coisa que a humanidade
(morta) comenta aqui, é que as pessoas agora se alimentam melhor. Não comem
qualquer coisa, uma boa parte da população virou vegana e a outra está pelo
menos pensando em se tornar. Que bom que nós dois já tínhamos iniciado esse
processo quando você era pequeno, não é? Mas sabe, o que mais me causa
estranhamento é sobre a relação de vocês com o tempo. Só pra você saber, eu
cheguei aqui hoje, ou ontem, ou semana passada ou até no ano que vem. Não temos
tempo. Aqui temos presença. Mas eu não deixei de contar os números na terra. E
eu sei que você já tem vinte e cinco anos. Quando morri por Covid-19 você tinha
só cinco. Que saudade daquele tempo. Enfim, o tempo mudou as coisas.
O tempo mudou pra mim aqui, mas
mudou pra todos vocês aí também. Vejo que não há mais tanta pressa, não há
correria como antes e você não conta mais o tempo em horas. Vocês contam o
tempo em momentos. Uma reunião não tem mais uma hora pra acontecer. Tem um
momento. Você não precisa mais correr contra o tempo pra chegar às oito. Você
só precisa chegar. E eu fico feliz, que mesmo com tudo o que aconteceu na sua
vida, você tenha crescido esse homem tão íntegro, nessa sociedade que
amadureceu seu tempo. Tenho orgulho de você. Vocês têm começado a entender o desnascer
e isso é bonito.
Eu queria te dizer por fim, que eu
te peço perdão. Perdão por todas as noites que não pudemos dormir juntos, por
todas as brincadeiras que não brincamos, por todas as letras que não lemos
juntos. Por não estar presente na sua vida quando conseguiu o seu primeiro
emprego, sua primeira transa ou quando seu pai faleceu.
Se você quiser saber se ele mora
por aqui também, sim, ele mora. Mas ainda não tivemos oportunidade de nos encontrarmos.
Ele está num processo muito recluso ainda. Dizem que ele está bem. E eu prometo
que vou visitá-lo em breve.
Meu filho, não sei como te
entregar essa carta ainda. Acho que vou colocar num envelope e esperar que
algum passarinho forte e corajoso venha até aqui e leve pra você.
Eu te amo, filho. Prometo que vou
passar continuar a observar o sol desnascendo.
Com amor,
Sua mãe.
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