segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Era pra ser um Memorial

... e assim se tenta contar uma história. Sou um personagem bem escrito, o meu escritor dizia que meus traços eram inconfundíveis, que eu fui uma criança, como muitas, com problemas até belas beiradas, pais separados, criativa talvez por ser canhota, mas enfim criativa. Minha história já era livro antes de ser livro.
E vou contar como tudo começa, no livro, na minha história, na minha história no livro, e não confunda, eu vivo dentro e fora do livro.
A primeira vez que eu entrei no livro, ou melhor quando alguém leu minha história, eu recordo bem foi aos cinco anos, eu sempre fui muito espoleta, era o que minha mãe dizia. Eu não tinha madrasta malvada naquela época, só tinha minha mãe, minha irmã mais nova e meu pai, um descaso do destino.
Eu gostava de desenhar e escrever, coisas que aprendi de cara com o Pequeno Príncipe, mas meu escritor não cortou minhas asas, ou talvez tenha me feito em alguns momentos surda, pra não ouvir críticas dessa gente adulta que pensa que sabe de tudo.
Tive muitos amigos, eu era meio introspectiva e meio famosa, não sei como conseguia, mas eu conseguia. Eu gostava de ir a biblioteca, me escondia lá no fundo, lia livros da prateleira de cima, participava de festas dos meus colegas personagens, decorava poemas dos amigos do meu criador e os declamava com orgulho. Ganhei até alguns prêmios.
Eu gostava mesmo de estar nos livros, mas eu precisava sair às vezes. Era um saco, mas eu saía. Meu escritor até isso planejava.O mais legal foi quando comecei a argumentar com o meu escritor, eu aprendi a ler, precisava aprender.
Ele me fez uma criança simples, eu era pobrinha e limpinha com orgulho, falava inté meio capirra naquela época, mas eu sabia que inda ia ser alguém na vida.
Fui uma das primeiras a ler na minha classe, nessa história eu nem era protagonista, minha professora que era. E ela era naquelas lindas, tipo atriz de novela mexicana. E ela ensinou direitinho: b com a igual a ba.
Anos mais tarde eu acabei fazendo estágio com ela, que gostosura do destino, méritos ao meu criador.
Meus pais biológicos nunca leram pra mim, heranças dos pais pobrinhos e limpinhos deles. Ainda bem que comigo foi diferente.E eu me formei em Letras Licenciatura, orgulho da família Silva, quer mais brasileiro, pobrinho e limpinho que isso? Aprendi English, só não fui pros states ainda, mas eu vou, há se eu vou.
O jeito caipira ficou pra trás, trabalhei com mestres e até doutores. Aprendi a falar em silêncio, fiz amigos surdos e me tornei intérprete. Meu criador é mesmo um gênio.
Já tava na hora de eu produzir algo, minha herança genética é forte, e meu criador se animou quando eu comecei a lecionar e escrever. Ele dizia que eu era além do meu personagem e que precisava ficar de olho em mim senão eu pulava pra fora dos livros e escrevia o meu próprio final. Também pudera, eu lia tanto os clássicos na escola.
Só que avancei e comecei a ingressar nos contemporâneos, até os alunos que o meu criador me deu eu fiz gostar dos pós modernos.
Meu escritor era especial, mas na minha lista existiam outros tais como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Eduardo Galleano, José Sarmago, Jostein Gaarder, Lygia Fagundes Telles e Carlos Drummond de Andrade.
Achei que a traça iria me corroer, fiquei um ano e pouco estagnada nas estantes, mas uma bela e sincera amiga me tirou a poeira. Meu escritor está velhinho, mas há tinta em sua pena e eu só não sei mais nada porque ele não escreveu ainda. Ele disse-me ocasionalmente que eu vou voltar a lecionar, porque sou uma súdita voraz, tão voraz que até ando escrevendo histórias, já fiz um curso de escritores do SESC, sonho com contações de histórias e comprei um notebook, substituto sem igual da pena com tinta do meu criador.

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